Camilo Vladimir de Lima Amaral
Texto publicado no Jornal UFG, nº 41, de outubro de 2010.
Fonte da foto: www.goiânia.go.gov.br
O tema qualidade de vida é sempre polêmico. Muitos institutos tentam quantificar e definir o que é qualidade de vida. Entretanto, eles sempre esbarram na definição dos critérios. Como definir o que é mais importante e que peso dar a cada aspecto da vida: saúde, lazer, educação e trabalho? Como colocar tudo isso num quadro definitivo sem incorrer em divergências culturais e históricas, etnocentrismos, diferenças de idade e de gênero?
Houve tempo em que o esgotamento sanitário não era uma questão prioritária e, por vezes, sequer considerada; hoje em dia o debate segue adiante numa perspectiva muito mais abrangente do problema: o saneamento ambiental. Em outros momentos da história, o carro era o símbolo de desenvolvimento e a maioria das grandes cidades cedeu grande parte de seus territórios e investimentos ao automóvel. Hoje, as propostas de vanguarda transferem as soluções da esfera individual para a esfera coletiva e sustentável: a mobilidade não-motorizada e o transporte coletivo sobre trilhos.
A impossibilidade de se definir tout court o que é qualidade de vida e, em seguida, definir como atingi-la é justamente o que torna essa questão central. O debate e a reflexão sobre o tema levam a sociedade a refletir quais os caminhos e em que direção deseja seguir. Acreditou-se por muito tempo que esse processo poderia ser definido tecnicamente, cientificamente e precisamente, estabelecendo as chamadas “necessidades básicas e universais” da população. Esse processo levou a uma massificação da vida, tão evidente nos conjuntos habitacionais do BNH e, também, nos atuais.
O que os processos tecnificantes da sociedade industrial fizeram foi transformar a vida cotidiana em compartimentação, reificação e alienação do tempo da vida, modo de produção e consumo. Isso quer dizer que a vida se torna menos densa: o trabalho não traz prazer; não se habita a cidade, mas apenas uma pequena propriedade privada; perdem-se horas diárias apenas locomovendo-se; as empresas controlam nosso tempo de lazer e nossa saúde; o ritmo do trabalho condiciona a vida familiar; o lazer transforma-se em consumo; o trabalho intelectual [livre?] submete-se a padrões, tendências, normas, manuais, programas computacionais, sistemas de avaliação etc.
Soma-se a esse quadro o fato de que o mundo está cada vez mais urbano. Não apenas porque a população reside cada vez mais em cidades, mas também porque o que era típico da vida citadina alastra-se por todo o território: os contatos, a comunicação, os direitos, o trabalho assalariado, as novidades. Assim, a vida e a experiência da qualidade acontecem num cotidiano crescentemente mais marcado pelas relações sociais e políticas (aquelas da polis). E se não há como pensar individualmente a vida em comum de qualidade, seguimos fracassando em nos aproximar: vivemos cada vez mais coletivamente e nos sentimos cada vez mais em solidão; temos mais meios de comunicação e somos mais distantes; temos mais conforto, e vivemos em maior ansiedade; mais elementos de controle, e maior caos; mais velocidade, e mais congestionamentos.
Refletir sobre qualidade de vida depende fundamentalmente de como a vida acontece concretamente: no confronto direto com o outro que limita e expande nossos horizontes. Não basta o direito constitucional à igualdade, se no dia-a-dia a vida é desigual. Também não basta atender ao mínimo abstrato ou quantificado, se o que satisfaz o espírito é o gozo daquilo que sublima a experiência vivida: a aproximação do concreto e do desejado. Se as pessoas pensam, desejam e têm valores autônomos, a qualidade de vida depende da liberdade de definir sua própria experiência cotidiana, tornando sua vida uma obra de arte e a cidade o símbolo e reflexo de seus desejos.
Assim, o desafio está posto: como transformar a cidade e nosso cotidiano naquilo que desejamos? O primeiro passo, apenas o primeiro, é refletir.
Camilo Vladimir de Lima Amaral é Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo Faculdade de Artes Visuais (FAV), na Universidade Federal de Goiás.
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